Sofrência, ensina o dicionário popular, é o neologismo formado a partir da união das palavras “sofrimento” e “carência”. Criado para rotular as canções de dor de cotovelo de Pablo, um intérprete baiano conhecido como o “rei do arrocha”. O termo caiu como uma luva para classificar uma nova turma de compositores e cantores do universo sertanejo. Sofrência são as criações de Marília Mendonça, morta em novembro de 2021, que conquistou o país com suas letras sobre mulheres repudiadas por maridos ou amantes sem perspectiva do futuro; sofrência é o canto de Maiara e Maraisa, dupla de gêmeas que trazem a aflição embutida na vogal de cada composição que apresentam no palco e nos estúdios de gravação; sofrência é o repertório de duplas como Henrique e Juliano, Matheus e Kauan, entre muitas outras que preferem trilhar o caminho da dor a falar de noitadas. O Martírio também se estendeu pelo pop. A pernambucana Duda Beat, por exemplo, se tornou um dos principais nomes de showbiz atual ao forjar letras a respeito de duas decepções amorosas. Os dois tipos de agrura raramente se conversam: existe um muro imaginário que separa os sertanejos, gênero musical mais escutado nas rádios brasileiras, do resto do showbiz. Mas de tempos em tempos surge um artista que rompe as barreiras entre os dois mundos. O paulista João Vitor Romania Balbino, de 27 anos, é um deles.
Jão, como é conhecido pelo público, agrada tanto as plateias da turma da bota e do chapelão quanto do universo pop. Os primeiros se identificam com suas melodias de essência sertaneja, que poderiam figurar no repertório de um Luan Santana ou de um Jorge e Matheus. Já os adeptos do pop curtem o revestimento eletrônico que Jão dá a cada composição, muito próximo do rock nacional dos anos 80.
Amado pelos jovens.
Com esse livre trânsito entre mundos diferentes. Jão arrasta multidões para seus shows. Nos últimos meses, o cantor empolgou o público que lotou o Allianz Parque, em São Paulo, na apresentação de abertura para a banda americana Maroon 5, e brilhou em dois festivais de música pop: o Lollapalooza e o Mita. Em setembro ele será uma das atrações do Sunset, segundo palco do Rock in Rio.
Nós vamos criar um show do zero. Quero que seja um show de transição entre Pirata, minha última turnê, e o que quero criar e explorar musicalmente no futuro. Está tudo no papel, preciso decidir e já está me dando ansiedade.
Jão
Jão é o primeiro grande ídolo da geração nascida no início dos anos 2000. Segundo dados do YouTube, plataforma por onde se lançou, em meados da década passada, 47% dos espectadores de seus vídeos estão na faixa dos 18 aos 24 anos e 25% entre os 25 e os 34 anos. A principal fonte de inspiração do artista é o cantor e compositor Cazuza.
Gosto da maneira de ele falar com o povo
Jão sobre Cazuza.
Ele interpreta o Tempo Não Para em seus shows e recentemente conversou com Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, que lhe acenou com letras inéditas do filho.
Nossos interesses de leva essas obras adiante é mútuo. Mas quero estruturar isso da maneira mais respeitosa que existe. Tenho tudo pensado, só falta gravar.
Jão
Em termos conceituais, no entanto, Jão se aproxima muito mais de Renato Russo do que do autor de Bete Balanço, famoso por seu sarcasmo e cinismo. Por mais que não tenha a erudição literária e musical do ex-vocalista da Legião Urbana, o pop star paulista possui letras que falam de relações amorosas complicadas e da incapacidade de amar, tal e qual Renato Russo fez na década de 1980.
“Meu coração é grande/E cabem todos os meninos e meninas que eu já amei.” Diz em meninos e meninas, que celebra a geração com liberdade para amar.
A música dele vai ao encontro de uma lacuna deixada principalmente por Cazuza e Renato Russo. Reúne melodia de qualidade, letras expressivas e atitude de sobra
Diz Paulo Lima, presidente da Universal Music
Descoberta Acidental.
Jão nasceu em Américo Brasiliense, muncicípio pertencente à região de Araraquara, estado de São Paulo. Fã de Cazuza e de Marisa Monte, aprendeu a tocar violão, teclado e flauta, e compunha canções sozinho, em casa, e fazia pequenas apresentações nas festas da escola. Aos 17 anos, mudou-se para a capital, onde dividia com mais três pessoas um diminuto apartamento, ao qual deu o carinhoso apelido de “muquifo”. Na faculdade de publicidade na USP, ele encontrou dois companheiros que até hoje integram seu séquito: Renan Augusto e Pedro Tófani, que atuam respectivamente como empresário e diretor criativo. Foi Pedro, aliás, quem descobriu, sem querer, que o amigo sabia cantar.
Numa festa, peguei o celular dele para trocar de música e descobri uma composição dele. Ele surtou, ficou bravo.
Pedro Tófani.
Ao jornal O Globo, o cantor disse que, naquela época, estava decidido a seguir carreira como publicitário porque não se achava um bom músico. Na mesma entrevista, ele se diz pessimista e afirma ter se surpreendido com o sucesso no Lollapalooza, pois estava preparado para cantar para poucas pessoas na plateia – na realidade, Jão encontrou um público superior à população de sua cidade natal esperando por ele no Autódromo de Interlagos, onde ocorreu o festival. A confiança para fazer da música o plano A veio três anos depois de ter seu talento acidentalmente descoberto pelo amigo na festa. Primeiro, passou a se apresentar em barzinhos e karaokês para custear sua vida na cidade. Depois, com a ajuda de Pedro e Renan, começou a gravar releituras de sucessos do universo pop e colocar no YouTube.
O bom desempenho na plataforma de streaming chamou a atenção de Head Media, conglomerado de produtores e empresários que o chamaram para uma conversa. O interesse era mútuo
Marcamos um papo com ele, que, para a nossa surpresa, estava tentando falar com a gente, porque curtia nossas produções. A partir daí, nossa parceria começou. Jão se tornou o primeiro artista assinado na label Head Media em parceria com a Universal Music
Diz Pedro Dash
Os dois primeiros álbuns de Jão, Lobos (2018) e Anti-Herói (2019), possuem assinatura dos produtores da Head Media. O YouTube também ficou atento ao sucesso do novo intérprete e o colocou em projetos da plataforma. Um deles foi o Jota Quest Collab by Roland, de 2018, onde recriou Amor Maior tendo o grupo mineiro como banda de apoio.
Jão demonstra potencial autoral desde o início, conseguiu marcar seu estilo fortemente até em canção cover
Walter Venício.
Artista e empreendedor.
O êxito de Jão tem muito a ver com o talento do trio (o cantor, Pedro e Renan) para empreendedorismo – a rede de apoio se transformou na produtora U.F.O, empresa com faturalmente anual de pelo menos 36 milhoes de reais, de acordo com o site Forbes. Desde cedo, o trio sabia que não poderia contar com o apoio financeiro de gravadoras.
Inicialmente foi pela falta de apoio mesmo, que era quase um desespero, já que eu havia acabado de me demitir e não tinha um plano B
Jão
Não me achava bonito ou bom o suficiente para ser notado milagrosamente. Mas eu me achava inteligente para deixar as coisas interessantes e traçar um plano para comer pelas beiradas. Então, reuni as pessoas e planejamos o que faríamos.
Jão
O talento empreendedor despertou muita criatividade (e certa dose de ousadia) para compensar a limitação dos recursos financeiros. Um exemplo? A ideia inicial era contratar uma empresa especializada para produzir o videoclipe de divulgação de Imaturo, mas eles descobriram que teriam de desembolsar pelo menos 200 mil reais para assinar um contrato desse tipo. Em vez disso, resolveram assumir a produção. Gravaram tudo na USP, com o pretexto de se tratar de um trabalho conclusão de curso. O resultado final não custou mais de 26 mil reais.
É a U.F.O que produz os shows de Jão. Os três arcam com as despesas e faturam o rendimento da bilheteria. Admirador do trabalho de Es Devlin, diretora do palco que desenhou as turnês de Beyoncé e Kanye West, Pedro Tófani surge com ideias ousadas para os espetáculos de Jão. Anti-Herói, excursão do disco de mesmo nome, lançado em 2019, trazia uma cabeça gigante, inspirada no teatro grego (ele queria ainda algumas colunas, mas Renan barrou, alegando que o curso sairia alto demais.
O mais recente, Pirata, é um dos espetáculos mais vistosos em cartaz pelo país. Com orçamento inicial de 500 mil reais, leva um navio, uma ceia com os músicos e chuva ao palco.
Minha principal meta com o show era que ele fosse uma experiência. Minha memória é muito ruim, mas as minhas lembranças mais vivas são de coisas que vivi em shows e festas com as pessoas de que gosto. Então, eu queria que tudo fosse em prol de provocar um sentimento de comunhão e impacto em quem fosse me assistir. E me sinto que até as pessoas que vão sozinhas ao meu show saem de lá com a sensação de terem feito parte de uma comunidade por algumas horas
Jão
Tenho um compromisso profissional de lutar para tornar o mercado de shows no Brasil um espaço cada vez mais competitivo e compatível com o nível dos talentos que temos aqui
Jão
Sofrência no DNA musical
Fã de música sertaneja, Jão lembra que, pelo fato de ser do interior de São Paulo, a sofrência sempre marcou presença nas rádios e nas festas que frequentava. O segredo está no revestimento pop que é dado pelos produtores.
Jão curte vários artistas do sertanejo, e isso sempre esteve presente em suas músicas. Ele é mais influenciado pelo sentimento que a música passa do que pelo estilo musical em sí. Quando começamos a trabalhar, entramos em estúdio e fizemos uma espécie de laboratório de criação por meses, testando de tudo, errando e acertando, até gostarmos do que estávamos ouvindo.
Pedro Dash
No álbum Pirata, lançado em outubro de 2021, o tom sertanejo deu lugar a uma sonoridade eletrônica que lembra grupos dos anos 1980, como o New Order.
Jão tem uma ideia bem definida do tipo de impacto emocional que quer captar e passar nas músicas. Com Pirata, tivemos o tempo para experimentar e tentar chegar a essas emoções
Paul Ralphes
Acredito que minha voz, forma de cantar e de escrever já são bastante características. Quando percebi isso, me permitir ser mais despretensioso em relação aos timbres e às produções. Quando sinto vontade de fazer algo mais eletrônico, ou algo mais voz e piano, ou algo mais funkeado, isso não me incomoda mais, só vou lá e faço
Jão
Pirata é puxado por Idiota, que, com seu clipe somando mais de 19 milhões de visualizações no YouTube, estourou nas plataformas de streaming.
A plateia do Jão é um espetáculo à parte. Ela canta antes, durante e depois das apresentações. Em Pirata, no Espaço das Américas, em São Paulo, um grupo acampou em frete à casa de espetáculos para ficar pertinho do ídolo no palco – e foi agraciado com uma pizza, entregue pelo próprio cantor. O rapaz tímido do início de carreira deu lugar a um intérprete seguro, consciente de seu poder com o público.
Gosto muito de estar no palco. Mesmo quando algo dá errado, ou estou inseguro, é uma proporção infinitamente menor do que no resto da minha vida. Não me sinto confortável ou satisfeito em quase nenhum outro ambiente. Então, aproveito cada segundo ali para mostrar tudo que eu sei.
Jão
A Fama e o assédio lhe deram saudade dos tempos do interior, quando podia caminhar tranquilamente até a padaria e comprar um pão. O excesso e shows também lhe cobrou um preço muito alto. Em 2016, sua avó, com quem o cantor tinha mais afinidade, iniciou uma rotina de entra e sai dos hospitais. Ela veio a falecer em 2018, e jão mal teve tempo de se despedir porque tinha uma apresentação marcada em outra cidade
Senti muita culpa por não ter passado mais tempo com ela
Jão
Talento nato
Tempos atrás, Jão assumiu sua bissexualidade, declaração aceita com tranquilidade pelos fãs.
A bissexualidade sempre esteve presente nas letras do Jão. Ele trata do assunto com naturalidade.
Pedro Tófani
Embora as canções deixem clara a sexualidade do artista, sua matéria-prima sempre foi a música, nunca a militância. Assim, o fato de admitir ou não ser bissexual é apenas um detalhe em meio a um talento nato. Como bem define Pedro Dash
Jão tem a capacidade de saber expressar, detalhadamente, como ele se sente sobre determinado assunto ou situação. E tem coragem de falar sobre assuntos pessoais e desconfortáveis, que as pessoas geralmente evitam. E esse é o ponto que faz com que milhares de pessoas se identifiquem com aquilo que ele canta.
Pedro Dash
Jão nasceu na contramão dos grandes esquemas. Juntou-se a dois fiéis escudeiros e alcançou a consagração somente por meio do seu carisma e musicalidade. E agora, no auge do sucesso, mantém-se assim: assistindo de longe toda a bajulação inevitável em torno de sua carreira.
Zé Pedro, Produtor.
Em meio a diversos talentos cunhados mais para o marketing do que para a música, João Vitor Romania Balbino se mantém fiel aos seus preceitos e carrega dicas que faz questão de compartilhar
Se rodeie de pessoas honestas e que tenham o mesmo sonho que você, mas que saibam te criticar; sua carreira não é a única coisa que existe na sua vida, cultive outras coisas porque uma hora ela vai te engolir; aprenda tudo que você precisar sobre seus direitos, como artista e como compositor; se coloque num lugar muito alto e acredite nele e na sua individualidade
Jão
Um artista notável, dentro e fora dos palcos.
E fica uma pergunta ao cantor. Que dica daria ao jovem Jão?
Logo você vai encontrar pessoas que te amam e que veem o mundo da maneira que você vê. Tudo vai fazer sentido.